Artigo Direito Penal
- Misael Rodrigues
- 8 de nov. de 2021
- 15 min de leitura
As mazelas da confissão para o indiciado e a importância do advogado em todas as fases do processo penal
1. INTRODUÇÃO:
O presente trabalho visa analisar os perigos que se acercam da confissão e como essa pode ser um instrumento perigoso na tentativa de se resolver algum crime e se condenar algum suspeito.
A finalidade desse trabalho é demonstrar como, durante a investigação em sede de inquérito – e até mesmo durante o processo judicial – pode induzir (ou coagir) o acusado a confessar um crime que não cometeu, seja por meio de falsas memorias oriundas do estado de pressão psicológica em que o investigado se coloca durante o interrogatório, seja em vistas a se beneficiar da atenuante do art. 65, III, d do Código Penal...
2. DOS PRINCÍPIOS BASILARES DO DIREITO PENAL:
No entanto, é impossível abordar qualquer tema do direito penal sem antes discorrer, ainda que superficialmente, acerca dos princípios que regem esse direito.
Inicialmente, importa citar o princípio da legalidade, sendo esse um dos principais e basilares princípios do direito penal. Esse princípio, que surgiu inicialmente na obra “dos delitos e das penas”, de Cesare Beccaria surge de um brocado em latim que preceitua que nullum crimen sine lege e nulla poena sine lege. Posteriormente, a sua previsão foi incluída no Código Penal brasileiro, em seu artigo 1º e, após, devida a sua importância, alcançou o patamar de direito fundamental, passando a constar, também, no inc. XXXIX do art. 5º da Constituição Federal.
Desse princípio, advém também o princípio da reserva legal, que determina que apenas a lei em sentido estrito (lei ordinária, que tem que passar por todo o procedimento legislativo para se tornar lei) pode prever um crime.
Outro importantíssimo princípio constitucional com reflexos na seara penal é o da presunção da inocência, cuja previsão expressa decorre do art. 5º, LVII da CFRB, e determina que ninguém poderá ser considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Esse princípio determinar que, ainda que haja um processo criminal em tramite, até que já não haja possibilidade para recurso, tendo o suspeito sido condenado, esse não poderá ser considerado culpado.
Dentre os princípios constitucionais, o que talvez tenha maior relevância para o presente estudo, é o do contraditório e da ampla defesa e da vedação à autoincriminação. O primeiro visa garantir ao indiciado os direitos de: ter ciência dos atos processuais; se manifestar e defender no processo; e, ter suas manifestações analisadas pelo judiciário que, caso não as acolha, deverá fazê-lo de forma fundamentada. Quanto ao segundo, determina que o acusado poderá se fazer valer de todos os meios lícitos para se defender dentro do processo judicial. Quanto ao terceiro, consiste em direitos como o silencio, a não produção de provas contra si mesmo e, até mesmo o de mentir perante o juízo, desde que não signifique imputar fatos inverídicos a terceiros.
3. SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS:
A ideia aqui é instruir quanto à importância de se ter um advogado presente em todas as fases do processo penal, seja durante o inquérito ou durante o processo de conhecimento.
Nesse sentido, importa dizer que, atualmente, a doutrina aponta a existência de três sistemas processuais penais. São estes: sistema inquisitório ou inquisidor; sistema acusatório; e, sistema misto.
O sistema inquisitivo, conforme descreve Nucci (2009, p. 110),
caracterizado pela concentração de poder nas mãos do julgador, que exerce, também, a função de acusador; a confissão do réu é considerada a rainha das provas; não há debates orais, predominando procedimentos exclusivamente escritos; os julgadores não estão sujeitos à recusa; o procedimento é sigiloso; há ausência de contraditório e a defesa é meramente decorativa.
Contrapondo-se diretamente a esse sistema, surge o sistema acusatório, que apresenta uma separação bem definida entre os órgãos da acusação e de julgamento. É marcado pela liberdade da defesa, com enfoque no contraditório e ampla defesa, sendo lícita a livre apreciação das provas sem valor previamente definido e tem a liberdade do réu como regra.
Por fim, há o sistema processual misto, que surgiu após a revolução francesa e juntou as melhores características de ambos os sistemas, sendo dividido em duas partes: a primeira, instrutória preliminar, que mantém características do sistema inquisitivo, e a fase de julgamento conta com a predominância do sistema acusatório.
Embora o ordenamento jurídico brasileiro tenha adotado o sistema acusatório, alguns doutrinadores discordam nesse aspecto, entendendo que o sistema processual penal brasileiro é misto, também conhecido como inquisitivo-acusatório. Em vistas a melhor explicar essa sistemática, vale-se das palavras do mestre Guilherme de Souza Nucci (2009, p. 25) que prediz que
os princípios norteadores do sistema, advindos da Constituição Federal, possuem inspiração acusatória (ampla defesa, contraditório, publicidade, separação entre acusação e julgador, imparcialidade do juiz, presunção de inocência etc.). Porém, é patente que o corpo legislativo processual penal, estruturado pelo Código de Processo Penal e leis especiais, utilizado no dia-a-dia forense, instruindo feitos e produzindo soluções às causas, possui institutos advindos tanto do sistema acusatório quando do sistema inquisitivo. Não há qualquer pureza na mescla dessas regras, emergindo daí o sistema misto.
De igual modo, a fase de inquérito ainda nutre fortes resquícios do sistema inquisitivo, uma vez que concentra todo o poder nas mãos do agente policial. Abrindo pouco espaço para atuação da defesa nessa fase.
4. CONFISSÃO NO DIREITO PENAL:
A confissão, no direito penal brasileiro, tem previsão legal nos arts. 197 a 200 do Código de Processo Penal, bem como no art. 65, III, d, do Código Penal, sendo que esse último oferece o benefício de uma atenuante ao réu que, espontaneamente, confessa o crime perante a autoridade.
Conforme nos ensina o ilustre Guilherme de Souza Nucci (2020, p. 665), a confissão, então, pode ser conceituada como
confessar, no âmbito do processo penal, é admitir contra si por quem seja suspeito ou acusado de um crime, tendo pleno discernimento, voluntária, expressa e pessoalmente, diante da autoridade competente, em ato solene e público, reduzido a termo, a prática de algum fato criminoso.
Complementa ainda o jurista dizendo que, “a confissão, para valer como meio de prova, precisa ser voluntária, ou seja, livremente praticada, sem qualquer coação (p. 665).” De igual modo, TAVORA e ANTONNI (2009, p. 359) conceitua esse instituto como
a admissão por parte do suposto autor da infração, de fatos que lhe são atribuídos e que lhe são desfavoráveis. O reconhecimento da infração por alguém que não é sequer indiciado não é tecnicamente confissão, e sim auto-acusação. Confessar é reconhecer a autoria da imputação ou dos fatos objeto da investigação preliminar por aquele que está no polo passivo da persecução penal.
Importante dizer que, embora a confissão exista tanto no processo civil quanto no processo penal, esses institutos possuem algumas características distintas. A título de exemplo, no processo civil, são aceitas as confissões por procuração e confissões fictas, onde a não contestação da ação gera a presunção de que as alegações de fato formuladas pelo autor são verdadeiras (art. 344 CPC/15).
Quanto a natureza jurídica da confissão, essa tem natureza de meio de prova, integrando o capítulo IV do Título VII do CPP, que discorre inteiramente sobre os meios de provas.
Vale discorrer, ainda, que, assim como as demais provas, a confissão recai puramente sobre os fatos, pois é somente quanto a esses que o réu se defende. Portanto, a confissão não obsta a recapitulação jurídica dos fatos.
Nucci (2020) traz, ainda, a divisão da confissão em duas espécies, sendo essas: a) quanto ao local, que pode ser judicial, quando produzida perante autoridade judicial competente para julgar a situação (nesse caso, estará diante da confissão judicial própria. Em contrapartida, a confissão judicial impropria se apresentará quando for apresentada perante autoridade judicial incompetente para análise do caso concreto); ou, extrajudicial, quando confesso o crime perante as autoridades policiais, parlamentares ou administrativas que possuírem competência para ouvir o depoente; b) quanto aos efeitos gerados, aos quais, segundo Nucci, a confissão pode ser simples ou qualificada, sendo que aquela ocorre quando o réu autor do crime admite a pratica do delito de maneira pura e simples, sem a intenção de se beneficiar da confissão; essa ocorre quando há a admissão da culpa quanto ao principal, porém, o réu apresenta demais informações visando excluir ou atenuar a sua pena.
5. DOS VICIOS DA CONFISSÃO EM SEDE POLICIAL E DOS RISCOS À DEFESA DO ACUSADO:
É cediço que, durante o inquérito policial, muita das vezes, essa confissão ocorre de maneira equivocada e, até mesmo, algumas vezes, falsa. Sendo induzido ao erro por conta da pressão do interrogatório policial. Essa confissão falsa pode surgir até mesmo com a finalidade que seja reconhecida a atenuante da confissão espontânea, já que essa poderá ocorrer a qualquer momento do inquérito policial ou da ação penal.
Ademais, os tribunais têm, até mesmo, acolhido a validade das confissões em sede de inquérito, ainda que sem a presença do advogado, como pode ser observado no seguinte julgado:
RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 128206 - CE (2020/0131874-9) RELATOR : MINISTRO RIBEIRO DANTAS RECORRENTE : MARDEN NASCIMENTO DA COSTA ADVOGADO : OREILLY GABRIEL DO NASCIMENTO - CE025533 RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO CEARÁ CORRÉU : JOAO CARLOS PONTES ALBUQUERQUE DECISÃO Trata-se de recurso em habeas corpus, com pedido de liminar, interposto por MARDEN NASCIMENTO DA COSTA contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, assim ementado: "HABEAS CORPUS. AFASTAMENTO DE LICITANTE POR OFERECIMENTO DE VANTAGEM NA MODALIDADE TENTADA. PRETENSÃO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. NULIDADE DE PROVAS ILÍCITAS. CONSTRANGIMENTO NA APREENSÃO DE DOCUMENTOS. INEXISTÊNCIA. CONSENTIMENTO DO PACIENTE NA VISUALIZAÇÃO DOS DADOS PELA AUTORIDADE POLICIAL. REALIZAÇÃO DE CONFISSÃO EM INTERROGATÓRIO EXTRAJUDICIAL SEM A PRESENÇA DE ADVOGADO. AUSÊNCIA DE COAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE APTA A ENSEJAR NULIDADE. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA O PROSSEGUIMENTO DO FEITO. IMPROCEDÊNCIA. DENÚNCIA FUNDAMENTADA EM INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA E MATERIALIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CONFIGURADO. ORDEM NEGADA.
(STJ - RHC: 128206 CE 2020/0131874-9, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Publicação: DJ 27/08/2020)
Denota-se que, in casu, o tribunal não reconheceu a ilegalidade da confissão no interrogatório extrajudicial sem a presença do advogado, arguida pela defesa, já que não fora visualizada coação durante o interrogatório.
É importante ressaltar, aqui, que durante os interrogatórios, o suspeito se vê submetido a um estado psicológico que, acrescido das técnicas interrogatórias, podem acabar induzindo o suspeito a uma falsa confissão.
Nesse prisma, vale citar o estudo realizado em 2015 por Julia Shaw e Stephen Porter com 60 alunos de graduação na Canadian university, que consistiu na inclusão de uma informação familiar modificada para os entrevistados e fazer com que eles acreditassem, por meio dessas memorias parcialmente falsas, que haviam cometido um crime. Dentre os participantes submetidos a falsa memória, 70% destes acreditaram que realmente haviam cometido um crime durante a pré-adolescência, entre os 11 e 14 anos.
Corroborando com esse estudo, vale apresentar um famoso caso da corte americana em que Peter Reilly foi condenado por homicídio, acusado de ter matado sua própria mãe. Segundo o caso, Peter Reilly, com 18 anos à época, encontrou o corpo de sua mãe, que havia sido morta a facadas, ao chegar em casa em uma noite, vindo de uma reunião da igreja em um centro para adolescentes, pouco antes das 22h. Ao se deparar com a sua mãe caída no chão, Peter Reilly fez 5 ligações pedindo ajuda. No entanto, quando a polícia chegou ao local, por estar lá por seu olhar vazio, Reilly fora visto como suspeito.
Após um interrogatório que perdurou por 24h, período no qual passou ouvindo, repetidas vezes, o oficial afirmando que ele havia cometido o crime e narrando os fatos como supostamente teriam ocorrido, bem como se concordou a se submeter a um poligrafo, na esperança de esclarecer a sua inocência e auxiliar a força policial, sem a presença de um advogado, Reilly fora persuadido de que somente ele poderia ter cometido o crime, assumindo aquilo como verdade, as memorias de Peter preencheram as lacunas faltantes, tendo ele mesmo assumido ser ele o assassino e, por fim, confessando o crime.
Após a confissão, Reilly foi condenado a 16 anos por homicídio culposo, sendo liberado somente após 2 anos, quando foram encontradas novas provas que demonstravam a inocência de Reilly.
Tal como abordado ao longo do presente trabalho, a confissão deve ser analisada cautelosamente, eis que, devido ao estado psicológico do suspeito no momento do interrogatório, pode incorrer em erro ou até mesmo em uma confissão falsa.
No ordenamento jurídico brasileiro, embora em muito se tente combater esse risco quanto à inveracidade da confissão, conforme por ser verificado pela interpretação do art. 197 do CPP, que preceitua que
O valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância.
Nesse sentido, inclusive, apresenta a doutrina alguns requisitos intrínsecos e formais para que a confissão venha a ser válida, sendo esses:
Como requisitos intrínsecos, destacam-se a verossimilhança, que se traduz como a probabilidade de o fato efetivamente ter ocorrido da forma como confessada pelo réu; a clareza, caracterizada por meio de uma narrativa compreensível e com sentido inequívoco; a persistência, que se revela por meio da repetição dos mesmos aspectos e circunstâncias, sem modificação no relato quanto aos detalhes principais da ação delituosa; e a coincidência entre o relato do confitente e os demais meios de prova angariados ao processo. Por outro lado, como requisitos formais estão a pessoalidade, devendo a confissão ser realizada pelo próprio réu, não se admitindo seja feita por interposta pessoa, como o defensor e o mandatário; o caráter expresso, pois deve ser reduzida a termo; oferecimento perante o juiz competente, qual seja, o que está oficiando no processo criminal; a espontaneidade, impondo-se que seja oferecida sem qualquer coação; e a saúde mental, possibilitando-se o convencimento do juízo de que o relato não está sendo fruto da imaginação ou de alucinações do acusado. (AVENA, p. 490)
Deste modo, verifica-se que a confissão, no sistema penal brasileiro, é revestida de todas as proteções, exigências e requisitos necessários para garantir a sua veracidade. Ademais, vigora em nosso sistema jurídico, sendo um dos princípios basilares do direito penal e processual penal, o in dubio pro reo, que, traduzido, apresenta a ideia de que, em caso de qualquer dúvida, a decisão deverá ser em prol (a mais favorável) do réu.
Em contrapartida, por mais que o sistema processual penal brasileiro, sabendo das falhas na confissão, tenha determinado que seu valor é relativo, a mesma lei também determina que a confissão, ainda que retratável, não prejudica o livre convencimento do juiz, fundado no exame das demais provas (art. 200 CPP).
Isso posto, é cediço que, na prática, a confissão do réu, seja em juízo ou fora dele, é um fato praticamente determinante da culpabilidade do réu. Quanto a esse aspecto, corretamente apontou William Brennam (apud CIALDINI, p. 67)
the introduction of a confession makes other aspects of a trial in court superfluous, and the actual trial, for all intents and purposes, occurs when a confession is obtained (a introdução de uma confissão torna supérfluos outros aspectos de um julgamento no tribunal, e o julgamento real, para todos os propósitos, ocorre quando se obtém a confissão).
De igual modo, Francesco Carnelutti (2009, p. 65-66), renomado jurista e escritor italiano faz interessante apontamento em sua obra “as misérias do processo penal”, onde, citando a constituição italiana, que muito de igual modo se aplica à constituição brasileira, apresenta o seguinte argumento:
A Constituição italiana tem proclamado solenemente a necessidade de tal respeito, declarando que o imputado não deve ser considerado culpado enquanto não seja condenado por uma sentença definitiva. Mas esta é uma dessas normas que servem somente para demonstrar a boa-fé daqueles que a tem elaborado; ou, em outras palavras, a incrível capacidade de se forjar ilusões de que estão dotadas as revoluções.
Entretanto, ainda que a confissão prescinda de outras provas que corroborem com a matéria confessa, a jurisprudência pátria entende que o simples depoimento dos policiais no inquérito, reforçado por seu testemunho em sede judicial, é suficiente como prova. Nesse sentido, os seguintes julgados, in litteris:
TRÁFICO DE ENTORPECENTES. CRIME E AUTORIA COMPROVADOS. PROVA. PALAVRA DO POLICIAL E CONFISSÃO. CONDENAÇÃO MANTIDA. Os depoimentos dos policiais envolvidos nas diligências que culminaram com a acusação da prática de um crime por parte da apelante devem ser analisados como os de qualquer outra pessoa. Não se imagina que, sendo o policial uma pessoa idônea e sem qualquer animosidade específica contra o agente, vá a juízo mentir, acusando falsamente um inocente.Aqui, em prova convincente, os policiais informaram que possuíam informações no sentido de que a recorrente vendia drogas a mando de outro traficante. Em revista em sua residência, lograram êxito em apreender expressiva quantidade de crack, cocaína e maconha. Aliás, a própria apelante admitiu que a posse das drogas e que traficava ocasionalmente. Portanto, provado que a apelante traficava entorpecentes na ocasião.Apelo parcialmente provido.
(TJ-RS - APR: 70083180059 RS, Relator: Sylvio Baptista Neto, Data de Julgamento: 12/02/2020, Primeira Câmara Criminal, Data de Publicação: 03/03/2020)
EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES - ABSOLVIÇÃO E DESCLASSIFICAÇÃO - IMPOSSIBILIDADE - DEPOIMENTO POLICIAL E DE TESTEMUNHA - CONFISSÃO - CONDENAÇÃO PELO TRÁFICO MANTIDA - RECURSO NÃO PROVIDO. Comprovado, pela confissão do réu, aliada ao depoimento policial e de testemunha, que o réu trazia consigo drogas para fornecimento a terceiro, o édito condenatório pelo crime de tráfico ilícito de entorpecentes deve ser mantido.
(TJ-MG - APR: 10363170015996001 João Pinheiro, Relator: Júlio César Lorens, Data de Julgamento: 23/10/2018, Câmaras Criminais / 5ª CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 29/10/2018)
Nesse mesmo diapasão, uma agravante ainda maior pode ser noticiada, a título de exemplo, no Estado do Rio de Janeiro, onde existe um verdadeiro absurdo jurídico na forma de entendimento sumulado, a saber: a sumula 70 do TJRJ, ipsis verbis:
Processo penal. Prova oral. Testemunho exclusivamente policial. Validade.
“O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”.
Tal súmula, inclusive, configura veemente afronta ao art. 155 do CPP, já que esse artigo determina que “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”. Se contrapondo ao aludido artigo, a supracitada súmula autoriza a condenação do réu por meio de prova oral consistente nos depoimentos dos mesmos policiais que realizaram o inquérito.
Semelhantemente, essa mesma súmula viola o princípio da paridade de armas, posto ser autorizada a condenação do individuo se utilizando, como prova, apenas da palavra dos agentes que realizaram a prisão e inquérito do réu, o que faz com que o jogo processual pese para o lado da acusação em detrimento da defesa.
Pode-se verificar, consonante apresentado acima, que, embora a confissão tenha seu valor aferido de acordo com o valor dado as demais provas, o acolhimento dessa, em diversos casos, impõe grave risco à eficácia do processo como meio de se buscar a verdade real. Assim como demonstrado anteriormente, o depoimento dos policiais é tido como suficiente para prova, sendo que, durante o inquérito, esses mesmos agentes são os responsáveis pela investigação, vide art. 6º, caput e V.
Importante destacar, ainda, que no dia a dia, é prática corriqueira a dos agentes policiais de agirem de forma ilegal durante suas abordagens, deixando de informar os direitos básicos do indiciado, tais como o direito constitucional de se manter em silêncio e nemo tenetur se detegere (não produzir provas contra si mesmo), ou até mesmo conseguem que o indiciado confesse por meio de coação, o que pode o réu a uma confissão nula ou falsa.
Em que pese o direito de se manter em silêncio, esse traz interessante desdobramento, já abordado pela doutrina pátria, acerca da possibilidade ou não de o imputado poder mentir em juízo. O entendimento majoritário, quanto a isso, é que ambos os direitos acima mencionados, a saber: direito de se manter em silêncio e nemo tenetur se detegere, garantem ao suspeito o direito de - para refutar as alegações e questionamentos do juiz - até mesmo mentir, desde que não impute, falsamente, o fato a terceiros.
6. CONCLUSÃO:
Frente a todo o exposto, denota-se que a confissão é extremamente perigosa ao réu pois, uma vez confesso, ainda que, em regra, o juiz tenha que embasar o seu livre consentimento nas demais provas, quando confesso, ainda que o acusado se retrate da confissão dificilmente esta deixará de ser levada em consideração pelo juiz ao proferir a sua decisão.
Em vistas a isso, buscando garantir os direitos do réu, inclusive garantir que esse esteja em seu pleno discernimento durante o interrogatório, bem como para proteger o indiciado de qualquer violação aos seus direitos ou coação para que confesse, bem como a utilização de meios agressivos durante a investigação, em 2016 foi publicada a lei 13.245/16, que alterou o art. 7º do Estatuto dos Advogados, incluindo dois incisos, sendo um deles de maior interesse para o presente trabalho, a saber:
XXI - assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração:
a) apresentar razões e quesitos;
Embora a presença do advogado seja prescindível durante essas fases, a legislação brasileira já começa a apresentar um viés mais garantista, cujo objetivo é o de fazer cessar ou, ao menos, amenizar as violações ao direito do indiciado que ocorrem durante a investigação.
Em suma, pode-se concluir que, embora dispensável, a presença do advogado durante os interrogatórios do indiciado é essencial para fazer valerem seus direitos, bem como para ajudar ao acusado, enquanto submetido ao procedimento de investigação e durante o interrogatório, a resistir às técnicas invasivas utilizadas pelos agentes policiais.
Sendo assim, sabendo-se que no processo penal, o que se busca é puramente a verdade real, ou seja, aquilo que, de fato, veio a ocorrer no mundo real, o advogado se torna uma importante ferramenta para garantir que essa verdade não venha maculada por uma confissão distorcida, equivocada, ou até mesmo falsa, tal como auxilia a garantir que o processo de investigação corra sem ilegalidades ou irregularidades que possam ser prejudiciais tanto para o acusado que pode vir a sofrer uma condenação injusta ou equivocada, quanto para o estado que, no processo penal, visa apenas garantir que o sujeito que praticou o delito venha a pagar pela sua penitência.
7. REFERENCIAS:
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